Jorge... amado por quê?
Ana Lúcia Branco
“A única maneira de enricar naquela região é ser bom pistoleiro [...].”
(Jorge Amado. Cacau, 1933.)
“A única maneira de enricar naquela região é ser bom pistoleiro [...].”
(Jorge Amado. Cacau, 1933.)
Poderia iniciar este artigo de forma clássica e convencional: nome completo do autor enfocado, ano de nascimento e morte, movimento literário a que pertenceu... Mas tendências estereotipadas não me agradam e talvez venha justamente daí minha estima acadêmica por Jorge Amado que teve uma postura um tanto revolucionária, parcialmente “antimodernista”.
Como atesta dois dos grandes críticos literários de Amado, Eduardo de Assis Duarte (UFMG) e Silviano Santiago (UFRJ), a produção geral do escritor andou um tanto na contramão do projeto modernista, cuja ênfase do material estético recaia na elaboração da linguagem. Inovar, chocar, reinventar no campo linguístico eram palavras de ordem do período literário de então.
Porém, Jorge Amado não teve como bússola escritural a sofisticação narrativa ou a participação em grupos de vanguarda. Inclinou-se antes (e com maestria) à produção de narrativas de rápida aceitação popular com suas temáticas de cunho político e social. Conforme esclarece o professor de Literatura Brasileira da USP, Antonio Dimas, segundo Jorge Amado, a magia linguística na escrita teria levado parte de nossa crítica a se fixar mais na experiência formal, estilística do que no rumoroso mundo brutal e terno, violento e doce, de paisagens, figuras, dramas, batalhas, sertão, tristezas duras e burlescas do país.
Sem perder de vista o fundo artístico-literário, Amado ultrapassou os limites do literato e tocou no cerne de grandes questões sociais, como a estrutura da sociedade capitalista, as relações de trabalho, as implicações políticas na sociabilidade... Conseguiu isso sem resvalar para um reducionismo esquemático, o que faria da obra uma peça sociológica e não uma fonte literária. Sua produção possibilitou ao mesmo tempo uma reflexão significativa sobre a história e a sociedade brasileiras por apresentar uma sintonia fina com alguns impasses nacionais ao longo do século XX, sem abdicar completamente de certas características típicas do chamado romance de 30, como o engajamento dos intelectuais comprometidos com as reivindicações das classes trabalhadoras do campo e da cidade. Os seus livros “penetraram na poesia do povo, estilizam-na, transformam-na em criação própria, trazendo o proletário e o trabalhador rural, o negro e o branco, para a sua experiência artística e humana” (Candido, 1992: 64).
Não que seja preciso validar a grandiosidade de Jorge Amado, grandiosidade essa que o acompanhou desde o início de sua produção intelectual, pois seu primeiro trabalho, Cacau, teve sua primeira edição (1933) de 2 mil exemplares esgotada em 40 dias, mas nunca é demais umas palavras a mais sobre um escritor que soube criar livros torrenciais, humanos, vitais, numa prosa que parecia desleixada aos críticos, mas que o público foi absorvendo, gostando e consagrando. Em vista disso, no ano passado, 2012, quando se comemorou o centenário de nascimento de Amado, houve uma série de eventos, publicações, escritos lançados em sua homenagem.
Deter-me-ei em poucas linhas na obra que fecha o chamado ciclo dos “romances da Bahia”: Capitães da areia (1937), com ênfase na estética da malandragem especificamente. Inevitável antes mencionar o volume de 34, Suor, por ser localizar aí o gérmen da revelação dos problemas do trabalhador ou do espoliado urbano na Bahia. Foi com essa obra que Amado iniciou, portanto, a importante vertente romanesca da representação da vida marginalizada de trabalhadores e malandros baianos.
Penso o tópico do malandro a partir do renomado preceito desenvolvido por Antonio Candido em Memórias de um sargento de milícias, que versa em tons muito gerais sobre o polo da ordem que, dentro da desordem, atua a malandragem. Em outras palavras, poderia simplificar grosseiramente a ideologia ao dizer que se trata de um erro (conduta ilegal dos menores em Capitães da areia) dentro de outro erro maior (o gerenciamento social) que é transmitido, contudo, como acerto (o fazer justiça com as próprias mãos ante a desigualdade social).
Capitães centralizou-se, em síntese, em menores abandonados, reunidos em um grupo caracterizado pela delinquência e solidariedade, que já tinham aparecido em Jubiabá, mas ganharam tratamento aprofundado no romance de 1937, no qual a marginalidade infanto-juvenil foi retratada como problema social e não apenas como problema de política.
Em análise onomástica, saliento o personagem Pedro Bala que, no grupo, exerce uma influência um pouco maior em relação aos demais, pois dentro da esfera do erro em que atua, é ele quem paralelamente estabelece certa “ordem” interna dentro da desorganização que promove em conjunto com os seus parceiros. Enquanto exemplificação disso, cito a passagem do possível abandono de Sem Perna do grupo quando se viu numa posição social e afetivamente segura: convívio em uma casa fixa, com uma família economicamente estruturada. A subtração dele no grupo poderia enfraquecer o mesmo e enfraquecer, consequentemente, a causa a que agiam. Por isso, Pedro Bala o convenceu a retornar ao Trapiche.
Pedro, do latim, remete a “pedra”, ou seja, estrutura sólida, dura, o que me permite pensar na índole e caráter enrijecido do personagem – pessoa bruta, ríspida que é conduzido, induzido a transgressões por conta do descaso social para com os menos favorecidos economicamente do qual fazia parte ativa. Já o segundo termo que constitui seu nome – Bala – seria possível fazer analogia à arma de fogo, à violência, portanto, em sentido amplo, exatamente o meio de conduta que escolheu e empregou como meio de sobrevivência, roubando, assaltando e humilhando.
Por fim, reporto-me ao título da obra.
O termo primeiro já cria ligação direta com os sentidos de comando, liderança de uma organização particularizada. A pluralização do substantivo indica homogeneidade entre os membros do grupo de menores abandonados, homogeneidade mais propriamente em termos dos objetivos que os unem do que de personalidades, pois cada um tinha uma carência e vocação específica. Ainda que haja certa hierarquia na figura de Pedro Bala, como apontei no parágrafo precedente, o grupo todo tem o seu destaque no locus que atuam, pois são conhecidos pelo conjunto; não é O Capitão da areia, e sim os Capitães que são famigerados. Pensam em bando e agem em bando.
Além da posição de domínio – impressa no vocábulo “capitães” – eles têm uma segunda designação qualificativa: “da areia”. Areia, substância mineral, grânulos em pó. Reside sobre o termo uma concepção de fugacidade, de leveza, de algo que se deixa levar ao menor vento, além de portar toda uma noção de pequenez e fragilidade. Ora, apesar de sua coesão e força, o grupo de menores vive à margem da sociedade; não tem a lei ao seu lado, não conta com os que realmente exercem o poder social; correm o risco de serem pegos, presos e condenados ou mortos a qualquer instante. E, de fato, ao final do romance, os Capitães da areia se esfacelam, se desintegram como um castelo na areia.
Infiro que o livro toca em um tenso mal pátrio, em uma grande “ferida” ainda não cicatrizada no âmbito do território nacional: os meninos de ruas das grandes cidades. A falta de investimento no setor educacional se enquadra, a meu ver, como o proliferador dessa doença social, o que não cabe explanar porque isso daria assunto para a produção de outro artigo.
Jorge Amado fez-se altamente reconhecível na cultura nacional e internacional ao fazer da Bahia um microcosmo de um Brasil defeituoso, injusto, precário e primário em sua organização social, política e econômica. Fez de sua arte um instrumento de conhecimento da realidade brasileira em suas mazelas sociais, sob a consagração do epíteto de “romancista de putas e vagabundos”, ao que eu acrescentaria de malandros, bêbados etc. De modo ímpar, sobretudo com Capitães da areia, como assevera Rubem Braga desenvolveu uma “poetização da vida miserável” cutucando nosso país desigual pelos artifícios e respaldos da palavra literária.
Como atesta dois dos grandes críticos literários de Amado, Eduardo de Assis Duarte (UFMG) e Silviano Santiago (UFRJ), a produção geral do escritor andou um tanto na contramão do projeto modernista, cuja ênfase do material estético recaia na elaboração da linguagem. Inovar, chocar, reinventar no campo linguístico eram palavras de ordem do período literário de então.
Porém, Jorge Amado não teve como bússola escritural a sofisticação narrativa ou a participação em grupos de vanguarda. Inclinou-se antes (e com maestria) à produção de narrativas de rápida aceitação popular com suas temáticas de cunho político e social. Conforme esclarece o professor de Literatura Brasileira da USP, Antonio Dimas, segundo Jorge Amado, a magia linguística na escrita teria levado parte de nossa crítica a se fixar mais na experiência formal, estilística do que no rumoroso mundo brutal e terno, violento e doce, de paisagens, figuras, dramas, batalhas, sertão, tristezas duras e burlescas do país.
Sem perder de vista o fundo artístico-literário, Amado ultrapassou os limites do literato e tocou no cerne de grandes questões sociais, como a estrutura da sociedade capitalista, as relações de trabalho, as implicações políticas na sociabilidade... Conseguiu isso sem resvalar para um reducionismo esquemático, o que faria da obra uma peça sociológica e não uma fonte literária. Sua produção possibilitou ao mesmo tempo uma reflexão significativa sobre a história e a sociedade brasileiras por apresentar uma sintonia fina com alguns impasses nacionais ao longo do século XX, sem abdicar completamente de certas características típicas do chamado romance de 30, como o engajamento dos intelectuais comprometidos com as reivindicações das classes trabalhadoras do campo e da cidade. Os seus livros “penetraram na poesia do povo, estilizam-na, transformam-na em criação própria, trazendo o proletário e o trabalhador rural, o negro e o branco, para a sua experiência artística e humana” (Candido, 1992: 64).
Não que seja preciso validar a grandiosidade de Jorge Amado, grandiosidade essa que o acompanhou desde o início de sua produção intelectual, pois seu primeiro trabalho, Cacau, teve sua primeira edição (1933) de 2 mil exemplares esgotada em 40 dias, mas nunca é demais umas palavras a mais sobre um escritor que soube criar livros torrenciais, humanos, vitais, numa prosa que parecia desleixada aos críticos, mas que o público foi absorvendo, gostando e consagrando. Em vista disso, no ano passado, 2012, quando se comemorou o centenário de nascimento de Amado, houve uma série de eventos, publicações, escritos lançados em sua homenagem.
Deter-me-ei em poucas linhas na obra que fecha o chamado ciclo dos “romances da Bahia”: Capitães da areia (1937), com ênfase na estética da malandragem especificamente. Inevitável antes mencionar o volume de 34, Suor, por ser localizar aí o gérmen da revelação dos problemas do trabalhador ou do espoliado urbano na Bahia. Foi com essa obra que Amado iniciou, portanto, a importante vertente romanesca da representação da vida marginalizada de trabalhadores e malandros baianos.
Penso o tópico do malandro a partir do renomado preceito desenvolvido por Antonio Candido em Memórias de um sargento de milícias, que versa em tons muito gerais sobre o polo da ordem que, dentro da desordem, atua a malandragem. Em outras palavras, poderia simplificar grosseiramente a ideologia ao dizer que se trata de um erro (conduta ilegal dos menores em Capitães da areia) dentro de outro erro maior (o gerenciamento social) que é transmitido, contudo, como acerto (o fazer justiça com as próprias mãos ante a desigualdade social).
Capitães centralizou-se, em síntese, em menores abandonados, reunidos em um grupo caracterizado pela delinquência e solidariedade, que já tinham aparecido em Jubiabá, mas ganharam tratamento aprofundado no romance de 1937, no qual a marginalidade infanto-juvenil foi retratada como problema social e não apenas como problema de política.
Em análise onomástica, saliento o personagem Pedro Bala que, no grupo, exerce uma influência um pouco maior em relação aos demais, pois dentro da esfera do erro em que atua, é ele quem paralelamente estabelece certa “ordem” interna dentro da desorganização que promove em conjunto com os seus parceiros. Enquanto exemplificação disso, cito a passagem do possível abandono de Sem Perna do grupo quando se viu numa posição social e afetivamente segura: convívio em uma casa fixa, com uma família economicamente estruturada. A subtração dele no grupo poderia enfraquecer o mesmo e enfraquecer, consequentemente, a causa a que agiam. Por isso, Pedro Bala o convenceu a retornar ao Trapiche.
Pedro, do latim, remete a “pedra”, ou seja, estrutura sólida, dura, o que me permite pensar na índole e caráter enrijecido do personagem – pessoa bruta, ríspida que é conduzido, induzido a transgressões por conta do descaso social para com os menos favorecidos economicamente do qual fazia parte ativa. Já o segundo termo que constitui seu nome – Bala – seria possível fazer analogia à arma de fogo, à violência, portanto, em sentido amplo, exatamente o meio de conduta que escolheu e empregou como meio de sobrevivência, roubando, assaltando e humilhando.
Por fim, reporto-me ao título da obra.
O termo primeiro já cria ligação direta com os sentidos de comando, liderança de uma organização particularizada. A pluralização do substantivo indica homogeneidade entre os membros do grupo de menores abandonados, homogeneidade mais propriamente em termos dos objetivos que os unem do que de personalidades, pois cada um tinha uma carência e vocação específica. Ainda que haja certa hierarquia na figura de Pedro Bala, como apontei no parágrafo precedente, o grupo todo tem o seu destaque no locus que atuam, pois são conhecidos pelo conjunto; não é O Capitão da areia, e sim os Capitães que são famigerados. Pensam em bando e agem em bando.
Além da posição de domínio – impressa no vocábulo “capitães” – eles têm uma segunda designação qualificativa: “da areia”. Areia, substância mineral, grânulos em pó. Reside sobre o termo uma concepção de fugacidade, de leveza, de algo que se deixa levar ao menor vento, além de portar toda uma noção de pequenez e fragilidade. Ora, apesar de sua coesão e força, o grupo de menores vive à margem da sociedade; não tem a lei ao seu lado, não conta com os que realmente exercem o poder social; correm o risco de serem pegos, presos e condenados ou mortos a qualquer instante. E, de fato, ao final do romance, os Capitães da areia se esfacelam, se desintegram como um castelo na areia.
Infiro que o livro toca em um tenso mal pátrio, em uma grande “ferida” ainda não cicatrizada no âmbito do território nacional: os meninos de ruas das grandes cidades. A falta de investimento no setor educacional se enquadra, a meu ver, como o proliferador dessa doença social, o que não cabe explanar porque isso daria assunto para a produção de outro artigo.
Jorge Amado fez-se altamente reconhecível na cultura nacional e internacional ao fazer da Bahia um microcosmo de um Brasil defeituoso, injusto, precário e primário em sua organização social, política e econômica. Fez de sua arte um instrumento de conhecimento da realidade brasileira em suas mazelas sociais, sob a consagração do epíteto de “romancista de putas e vagabundos”, ao que eu acrescentaria de malandros, bêbados etc. De modo ímpar, sobretudo com Capitães da areia, como assevera Rubem Braga desenvolveu uma “poetização da vida miserável” cutucando nosso país desigual pelos artifícios e respaldos da palavra literária.
Ana Lúcia Branco
Graduada em Letras; professora, pesquisadora e revisora. Mestra, em Literatura Brasileira, pela USP, e Doutoranda, na mesma área, pela mesma Universidade.